domingo, outubro 03, 2010

O fumo

Andar de taxi é sempre uma incógnita; tanto pode ser a pasmaceira, a aventura, o medo, a surpresa ou outra coisa qualquer que se imagine. Ainda hei-de ter alguns anos disto pela frente, não vivi nada ainda mas há viagens que me ficaram na memória não pelos trajectos em si, que são sempre os mesmos, mas pela pessoa que conduzia está claro.
Hoje apanhei um senhor que passou a meninice dele na 24 de Julho, onde aprendeu a sobreviver, cuja mãe era uma santa e que detesta bêbedos, reminiscências de um pai que gostava muito de fazer duas coisas (para além de beber): não trabalhar e bater na mulher. Só um aparte: espanta-me sempre, mas compreendo ao mesmo tempo (tenho sempre que me contradizer), que as pessoas falem das suas vidas com esta aparente facilidade. Falo com mágoa, dizia-me ele; pois acredito que sim ou não estaria a falar disso, penso eu. Eu compreendo-o, ele não me conhece, nunca mais me vai ver, porque não aliviar um pouco o peso do saco? Um pouco de compaixão não faz mal a ninguém. Outra coisa que me espanta é que uma viagem tão curta dê para falar tanto, mas enfim; fiquei pelo menos contente de saber que a mãe do senhor passou mais tarde a ser tratada como uma princesa e que ele reviveria tudo de novo mesmo sem saber o que sabe hoje e sobretudo por isso!, frisou ele.
O senhor de que me lembro mais vezes é aquele cujo maior prazer na vida é fumar. Foi ele que mo disse enquanto fumava dentro do táxi que cheirava, obviamente, tremendamente a tabaco. Disse-me também que o segundo maior prazer da vida dele era ler (nunca teria adivinhado, confesso). Tinha 54 anos e vivia com os tios desde pequeno. Ele andava com o táxi de noite e o tio de dia mas que este trabalho não lhe agradava nada. O que ele gostava mesmo era de se fechar em casa a fumar, a ler e a escrever; sim que ele era licenciado e mestre em Línguas e fazia traduções regularmente para uma entidade qualquer, nessas alturas nada de táxi. Não falei muito nessa viagem, ele deu conta do recado todo com bastante qualidade devo dizer. Quando cheguei a casa não sabia bem o que pensar a não ser que aquela pessoa sabia qual era o maior prazer que tinha na vida e eu não.
Quando penso nele penso invariavelmente noutra pessoa, é um associação um pouco parva porque o que os liga é apenas e só o tabaco (no caso do segundo Gitanes azuis). Diria também o aspecto decadente e um certo nível cultural, vá. A reciprocidade da associação deu-se este sábado enquanto folheva um livro na fnac e pensava se o havia de levar para casa ou não. Acabei por deixá-lo lá.

0 comentários:

Blogger templates